Um texto sobre relações afetivas entre homens e mulheres em Cadernos Negros, a partir da leitura e análise de alguns poemas.

Palmares - Passado e Presente

A Relação Afetiva entre o Homem e a Mulher na Poesia dos Cadernos Negros

Por Esmeralda Ribeiro

Segundo o historiador Décio Freitas, no Quilombo dos Palmares “a insuficiência de mulheres gerou conflitos violentos, às vezes sangrentos, em torno da posse de mulheres. Para preservar a coesão social, instituiu-se o casamento poliândrico. União da mulher com até cinco maridos, todos viviam no mesmo espaço físico, no mesmo Mocambo”.

É consensual a opinião sobre a existência de uma diferença em relação a como o homem e a mulher contemporâneos encaram a relação afetiva amorosa e, mesmo que o amor não esteja ligado exclusivamente ao casamento, a situação de escassez de mulheres é elucidativa. Podemos partir daí, dando ênfase para a situação de casamento poliândrico em Palmares, para tentar pensar como esse relacionamento afetivo amoroso mais desreprimido se refletiria hoje na poética feminina e masculina.

A poesia é o melhor instrumento para polarizarmos entre o passado e o presente porque: “O poeta vê a própria interioridade na qual se reflete, retrata o mundo”, afirma o escritor e jornalista Fernando Paixão.

Relendo as poesias dos Cadernos Negros tive algumas inquietações: quem com esse passado acumulado mostra na poesia uma afetividade prazerosa? E, quem, afetivamente, desceu o “morro”, isto é, quem em seus poemas não reflete a afetividade que os Palmarinos devem ter possuído? É o escritor ou a escritora negra?

Na poética amorosa masculina é forte a imagem da sedução, da afetividade. Amor e erotismo se fundem numa coisa só:

BENÇÃO DAS ÁGUAS

Deveria ser pleno
é mínimo
cinza
úmido
no ápice de um feriado
um dia nublado

A plenitude por dentro
desejo
o que eu queria
surpresa
o sol não veio
e ganho a benção que chove

Deusa das águas, ela deixa o chuveiro
e se instala na sala de minha retina
ela e sua toalha-turbante
perfeita sereia mesmo longe d’areia

Que sorte eu aqui tão perto
no meio do dia e das águas nubladas
a sedução ao vivo
lábios
olhos
a tez
e o verdejante turbante
coquetel de cores
tesão por todos os poros
no mínimo, o máximo
domingo total
no qual mergulhei de cabeça.
      (Jamu Minka, in Cadernos negros 19)

A metáfora Sereia ilustra bem o poder de sedução que a mulher exerce sobre o homem. A excitação sugere a iminência do ato sexual. Ele está disposto a se entregar de corpo e alma. Na poética masculina o desejo do “amor infinito” é colocado sem nenhum pudor no papel:

CANTO À AMADA

Não fosse sua boca um luar
E seus olhos
Cintilantes estrelas
Não fossem suas mãos
Perfumadas pétalas
E teus braços
Um leito acolhedor
Não fosse sua vida minha vida
E teu corpo minha inspiração
Ainda assim te adoraria
E te chamaria: meu amor
Pois a ti eu pertenço
Como a própria pele…
     (Márcio Barbosa, in Cadernos negros 5 )

“As oferendas”, “os cantos”, dão metaforicamente a sensação de que eles nunca estão sós. Para isso regam a planta do amor: para que se enraíze em seus corações:

OFERENDA PARA A MINHA AMADA

O vento soprou uma semente
leve como uma pluma
linda como uma estrela!

E ela caiu e penetrou de mansinho
nas terras desertas do meu coração

No meu peito nasceu uma planta
que está crescendo lentamente

E todas as manhãs
eu a rego carinhosamente
com sonhos e atitudes

Sinto a cada dia que passa
que as raízes
penetram mais fundo
na medula do meu ser

Levando-me a cantar com alegria
porque é grande a magia
que está encantando o meu viver!

E aguardando ansioso
o tempo da colheita
no “sim” do teu coração

Passo dias e noites torcendo
que flores e frutos brotem
para ofertá-los a ti, Vida
     (Oubi Inaê Kibuko, in Cadernos negros 7)

Na poética feminina negra a afetividade caminha junto com a dor. A escritora trabalha com o sentimento do “infinito enquanto dure”, embora ela não se entregue de corpo e alma. A porta da emoção precisa ser aberta. Ela dificilmente cultua no poema a imagem do homem que a seduz. Se o cheiro dele agradar, ele vem e jazz… Mas a porta da emoção continua fechada, então ela o deixará escapar entre os dedos. Seria como apanhar a água do rio com as mãos:

FLUIDA LEMBRANÇA

No líquido do copo
entorno a sua fluida
lembrança.
Bebo aos goles
o seu doce caldo
armazenado e curtido
em minha memória
e, quando depois
me erro nos passos
inebriada dos meus enganos
toco o vazio de sua ausência
percebendo, então
que você me escorre dos sonhos
Tal qual a baba indomável
que da boca do bêbado sonolento
escapa.
      (Conceição Evaristo, in Cadernos negros 18)

Ela impõe limites, porém o homem que conseguir ultrapassar esses limites vai encontrar uma mulher que expõe a sua solidão:

LIMITES

Abro as minhas portas e
a conformidade das suas coisas vem
numa adequação de causa e efeito.
Fecho minhas portas e
confusamente, as suas coisas vão
numa inadequação de solidão e desrespeito
Diante das inconformidades das minhas coisas.
     (Regina Helena, in Cadernos negros 9)

Quando o homem abre a porta da emoção – e por insensatez deixa marcas, sofrimentos, – se ele retornar é para fechar as feridas. Daí ele descobrirá que ela não havia dado todas as chaves para ele:

…NO REGRESSO

No dia em que retornares
provavelmente me encontrarás
entre a pia e o fogão.
Antes que tua boca te anuncie,
procurarei retirar a gordura densa
nas banheiras anunciadas na tevê.
Usarei o xampu que dará
mobilidade aos meus cabelos
farei teatro em tua presença.
Te convencerei de que minha disposição
é a mesma, te envolverei de tal forma…
farei morrer de inveja a melhor das atrizes.
Carregarei de ternura o teu coração
quero que me embales!
Deixarei deitares teus lábios nos meus
grossos e banhados em veneno doce
farei com que bebas através deles minha alma
e que nos consumamos os dois

Te carregarei para o inferno
em que minha vida transformaste.
     (Sônia Fátima, in Cadernos negros 19)

Há muito a pesquisar, mas na poética afetiva masculina a porta está sempre aberta, o poeta diz “ela me seduz, vou mergulhar de cabeça, vou pertencer a ela como a própria pele, vou regar o amor todos os dias”, mostrando a dualidade força/fragilidade. Isso nos remete a Palmares. Os homens eram fortes enquanto guerreiros. Mas lá talvez houvesse a fragilidade afetiva porque, para ter uma mulher ao lado, eram levados a conflitos sangrentos pela posse da amada.

A presença da mulher deu estabilidade social e familiar a Palmares. As condições sociais foram responsáveis pela implantação do modelo de família poliândrica. A consequência desse modelo deve ter sido, para a mulher, uma certa “liberdade amorosa”, de poder estar com dois, três ou até cinco homens vivendo sob o mesmo teto. Como afirma Décio Freitas, “os homens eram obedientes à mulher, que mandava em sua vida e no trabalho”.

Concluo que essa condição possibilitou à mulher Palmarina viver uma vida de prazer relativo, apesar do estado permanente de guerra contra os senhores de escravos. A mulher Palmarina pôde escolher com qual dos parceiros ela teria os seus filhos, pôde escolher, entre os parceiros, aquele que a levaria ao desejo de na cama colar em seu corpo como tatuagem, numa harmonia de corpos, aquele que a levaria de colo para uma infinita paixão. Na afetividade amorosa era a mulher Palmarina que tinha todas as armas e também o poder de seduzir e de querer ser seduzida. Mas a poética feminina não herdou nada dessa “liberdade amorosa” de suas ancestrais nos textos. Destruíram Palmares e destruíram também seu prazer amoroso. A poética feminina não tem nada a ver com o que deve ter sido o passado histórico afetivo das mulheres Palmarinas. Agora a história é outra. O sentimento militante feminista predomina em sua poética. Ela deixa bem explícito que as portas não estão mais abertas. Seus sentimentos estão sempre em guarda. É preciso saber tocar o interfone dos sentimentos. Ela avisa ao homem que ele não encontrará uma mulher submissa e sim uma mulher que decide pelo seu próprio corpo, uma mulher que decide sobre suas vontades. Ela falará tudo isso de uma forma dura e às vezes fria, são poucos os poemas nos quais o homem a seduz. Pode-se citar uma raridade. Um poema sem título:

Meu Zumbi
De corpo suado
De olhos meigos e doces
De boca ardente…
Nenhuma paisagem se iguala
à visão que tenho de você
Explosão de raça em forma de ser
o que mais quero:
Entrelaçar nossas peles retintas
Me animar de vida,
Buscar meu céu em sua terra
Saciar minha sede de mel em seu mistério.

Tatuar-te em meu corpo
para ter a certeza de tê-lo
preso-colado-filtrado em mim
na própria pele
rasgando a epiderme
que nem laser apaga
que aos poucos me rasga
e se fixa e me marca
num uno indivisível
     (Lia Vieira, in Cadernos negros 15)

No geral, a mulher desceu do “morro”, porque Amor romântico não combina com feminismo. A todo momento ela tem que mostrar poeticamente que é forte, só os fortes ganham a batalha, ganham o poder. Ela não permite expor seus desejos românticos sobre uma folha de papel. Está ocorrendo uma inversão de papéis, agora os homens são escassos, são as mulheres que, metaforicamente, têm de guerrear para ter um parceiro, talvez seja por isso que, na poética feminina, a dor e solidão são retratadas constantemente. Ao mesmo tempo em que ela quer ter um parceiro, ela também quer medir forças com ele. Ela não abaixa as guardas, é um elo que não se quebra. Poeticamente são os homens que querem um relacionamento duradouro, eterno e as mulheres um amor infinito, nem que seja por um dia ou por alguns segundos.

Para terminar: a poética masculina continua na Serra da Barriga, eles herdaram dos seus ancestrais o deleite, sentem o prazer pela amada com tanta intensidade como em Palmares. Quem sabe por ter que dividir com outros homens a atenção da mesma mulher, seu amor expresso na poesia é harmonioso, um amor na mesma sintonia, é constante a imagem de rolar na cama, chegando ao êxtase total. Amar é bom demais e por isso eles realizam, concretizam no papel, lindíssimos poemas de amor.

 

Esmeralda Ribeiro é escritora, jornalista e faz parte do Quilombhoje desde 1982. Tem atuado no sentido de incentivar a participação da mulher negra na literatura. Publicou “Malungos & Milongas”, conto, em 1988. Tem poemas e contos publicados em diversas antologias no Brasil e no exterior.

Bibliografia Citada

Cadernos Negros 5 (org. Cuti). São Paulo: Ed. dos Autores, 1982 (poemas)

Cadernos Negros 7, 9, 13 e 15 (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1984, 1986, 1990 e 1992 (poemas).

Cadernos Negros 19 (org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje: Ed. Anita, 1996 (poemas).

FREITAS, Décio. Palmares – a guerra dos escravos. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982.

PAIXÃO, Fernando. O que é poesia. São Paulo: Brasiliense, 1982.

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