Literatura afro contemporânea

Artigos e notícias

VALEU!

No dia 18 de dezembro realizamos o lançamento do trigésimo primeiro volume dos Cadernos Negros, um livro de poemas com 19 autores. Gostaríamos de agradecer a todos os que foram à Faculdade das Américas prestigiar o evento, levar o seu axé, mostrando que acreditam na literatura afro e a apoiam.

Nosso muito obrigado mesmo!

Foi muito legal rever as pessoas que já acompanham o trabalho há tanto tempo, ver jovens que estão chegando agora, as crianças, todos partilhando a celebração da poesia, que se deu no livro, na performance das atrizes, no depoimento dos autores, nos momentos mais sérios e nos de mais humor, na convivência.

- Leia aqui os textos de orelha e última capa do livro

Sabemos que muitos que não puderam ir torceram pelo sucesso do evento. Maledicências e energias negativas não tiveram vez. O que rolou foi a força da comunhão silenciosa dos sentimentos feita através das palavras, do ritmo, das imagens e metáforas. É, a poesia pode não ser a salvação do mundo, mas acrescenta mais beleza a ele. E a poesia afro com certeza acrescenta mais senso crítico, mais consciência.

Ao seguir em frente, o Quilombhoje se sente motivado por outros projetos, como Cooperifa, Quartinhas de Aruá, Literatura no Brasil, Elo da Corrente e tantos outros batalhadores da palavra, pelas entidades como Fala Negão, MNU, CNAB, Soweto, Ilê Aiyê, Inst. Negro Pe. Batista, Olodum, guerreiros da cidadania.
Mas continuamos contando especialmente com seu apoio.

Muitas realizações e muito axé em 2009!

E se você quiser presentear alguém ou se presentear com Cadernos Negros 31, acesse o link "como comprar".

Autores:
Ademiro Alves (Sacolinha), Claudia Walleska, Cuti, Dirce Pereira do Prado, Edson Robson, Elio Ferreira, Esmeralda Ribeiro, Fausto Antônio, Jamu Minka, Luís Carlos de Oliveira, Márcio Barbosa, Mel Adún, Miriam Alves, Mooslim, Rubens Augusto, Ruimar Batista, Sergio Ballouk, Sidney de Paula Oliveira, Tico de Souza

Reproduzimos aqui o e-mail de uma das várias pessoas que nos motivam:

"Fico feliz por ter participado de mais esta obra literaria que são os Cadernos Negros e também por tanta luta que vocês enfrentam com toda essa energia e com ela trazendo novos poetas e poetisas jovens. PARABÉNS DE CORAÇÃO, são letras maiúsculas para expressar a grandeza dessas obras e a contribuição de todos para nossa cultura e o povo afro. OBRIGADO FELIZ NATAL E UM ANO DE 2009 COM MUITO AXÉ E MAIS CADERNOS NEGROS."
                 José Carlos Eleutério

 


20 DE NOVEMBRO

O 20 de novembro tem uma história antiga. A idéia surgiu na década de 70, no Rio Grande do Sul, quando o grupo Palmares, resgatando a trajetória do quilombo de mesmo nome, propôs que fosse celebrado o Dia do Negro na data que marcava o desaparecimento de Zumbi.

Na verdade, o quilombo dos Palmares já havia se tornado referência para todos aqueles que acreditam em justiça social. Um frentenegrino como Vicente Ferreira, na década de 30 do século XX, por exemplo, celebrava a luta palmarina em seus discursos.

Na década de 70, no entanto, a proposta era abandonar as celebrações do 13 de maio. Muitos grupos iam por esse caminho e a idéia vinda do Sul ressaltava o aspecto coletivo da epopéia dos Palmares, o que colocava ênfase em aspectos mais comunitários e solidários.

Em 1978, o Movimento Unificado contra a Discriminação Racial, depois denominado MNU, propôs que o 20 passasse a ser considerado Dia Nacional da Consciência Negra, consolidando o desejo de todos aqueles que viam no 20 a afirmação de uma nova consciência e uma nova atitude em relação à questão racial brasileira.

Com o tempo, mais do que o aspecto palmarino coletivo, ressaltou-se a figura individual e heróica de Zumbi, um guerreiro que encarnava uma postura firme diante da opressão, um exemplo a ser lembrado por todos aqueles que se indignavam diante das injustiças do dia-a-dia. Zumbi atualmente figura no panteão dos heróis nacionais.

Mas na imagem do indivíduo a coletividade pode continuar a ser celebrada, mostrando que o espírito do quilombo continua vivo. Não só dos Palmares, mas de todos os outros que o antecederam ou sucederam. A decretação de feriado em mais de duzentas cidades brasileiras mostra isso. A luta de todos aqueles quilombolas não foi em vão. Palmares será sempre exemplo, para nós e para os que ainda virão, de que é possível construir uma sociedade justa.

Sim, nós podemos!


Um poema extraído do livro Cadernos Negros Melhores Poemas:

As palavras estão como cercas
em nossos braços
Precisamos delas.
Não de ouro,
mas da Noite
do silêncio no grito
em mão feito lança
na voz feito barco
no barco feito nós
no nós feito eu.
                     No feto

            Sim,

20 de novembro
           é uma canção
           guerreira.

Zumbi, de Abelardo Rodrigues



PARECE PIADA

Durante muitos anos fui desenhista e projetista numa empresa municipal e acontecia algo interessante.

     Naquela época a contratação não era por concurso e durante muito tempo fui o único negro num departamento com, digamos, trinta pessoas, no novo-antigo edifício Martinelli, centro de sampa.

     Eu tinha alguma consciência racial adquirida durante o movimento soul, o que fazia com que eu não aceitasse certas brincadeiras, mas não possuía muita ligação com movimentos políticos ou ativistas. 

     Havia um rapaz que tinha um estoque de piadas racistas que ele procurava contar sempre que eu estava por perto. Era pra ser engraçado? Me ofendia bastante. Discutimos algumas vezes e quase saímos na porrada.

     Eu sentia que a minha presença naquele mundo incomodava, despertando os preconceitos de alguns. Meus amigos estavam na reprografia, no almoxarifado... 

     Às vezes, ao chegar para trabalhar, eu encontrava um papel com duas ou três piadas em cima da minha prancheta. Seria pra descontrair? Eu sabia que não era o rapaz com quem eu discutia que fazia aquilo, nosso confronto era mais direto. Eu percebia os sorrisos dissimulados de outros desenhistas, o deboche vazando dos olhares. Mas pra mim, a vingança maior era permanecer ali. Assim mesmo: um negro no mundo dos brancos...

     Uma vez, ao voltar de férias, encontrei, como presente, algumas páginas com piadas racistas e mais alguns artefatos (uma banana, p. ex.). Levei ao nosso diretor, que prometeu uma investigação. Nem precisaria esforço, mas previsivelmente nada se descobriu, nada se levou adiante...

     Lembro dessas coisas agora porque a Coordenadoria da Mulher e da Igualdade Racial – CMIR , de Guarulhos, SP, vai entrar com uma representação contra um site que mantém piadas racistas e sexistas online.

     Espanta que um site assim esteja no ar, mas ainda bem que os tempos são de afirmação dos nossos direitos e que existe a CMIR.

     Rir é necessário e saudável, mas rir ridicularizando os outros pode ser perverso. Rir de alguém que está numa posição superior pode até ser uma vingança inofensiva. Mas rir de quem está por baixo pode ser um meio de afirmar a própria superioridade. E rir instigando o racismo e o sexismo é inaceitável e condenável sob qualquer ponto de vista.

     A piada inteligente é sempre bem-vinda, mas a piada de cunho racista ou sexista é um instrumento poderoso de discriminação, aliado a outros. Cristaliza, no imaginário, o papel e o lugar de pessoas ou grupos. 

     O legal, acredito, não é rir de alguém, mas rir com alguém.

     E que os que instigam o racismo e o ódio vão ocupar suas mentes com coisas úteis! Ou sofram o rigor da lei!

Axé!

Márcio


SOLANO TRINDADE, MEU PAI

RAQUEL TRINDADE

 

Creio que é o sonho de toda criança: ter um pai como o meu. Na época em que os pais batiam muito nas crianças, ele era carinhoso e paciente com a gente: eu, Godiva, Liberto e Chiquinho. Em 1945, ele já falava no Direito da Criança, quando essa lei nem sonhava em existir.

Antes de sair para o trabalho, para vender seus livros e quadros (que trabalho, dirão meus irmãos trabalhadores, ele dizia quando entrava no trem da Leopoldina em Duque de Caxias, no Rio), ele brincava com a gente no quintal.

Um dia uma vizinha foi fazer queixa de mim, porque eu tinha batido no filho dela. Ela dizia: ― Essa menina precisa de uma surra.

Meu pai, pra satisfazer a vizinha, disse pra mim: ― Você não quer ser artista? Vamos fazer um teste, eu vou bater com o cinto na parede e você grita como se estivesse apanhando de verdade ―. E assim foi... A vizinha ouviu os gritos de sua casa, e foi encontrar minha mãe Margarida no caminho: ― Dona Margarida, estou morrendo de remorso, fiz queixa da Raquel e seu Francisco deu uma surra nela.

MARGARIDA ― Francisco, você bateu em Raquel?

SOLANO ― Que nada, essa menina é uma artista, eu batia na parede e ela gritava.

De tarde, a vizinha, ainda com remorso, me trouxe um bolo.

Quando eu tinha 8 pra 9 anos, meu pai arranjou um emprego no IBGE da Praia Vermelha (Rio), só que me levava junto, assinava o ponto e saía comigo, me levava na Pinacoteca, na Biblioteca Nacional, na Escola de Belas Artes, no Municipal do Rio de Janeiro para assistir óperas, balé e música clássica. Parávamos depois no bar Vermelhinho, na rua Araújo Porto Alegre, em frente à Associação Brasileira de Imprensa (Rio), onde ele se encontrava com Grande Otelo, a pintora Djanira, Aldemir Martins, o sociólogo Edson Carneiro, com quem, junto com a minha mãe, criou o Teatro Popular Brasileiro. Estava também o Barão de Itararé, Silveira Sampaio, Paschoal Carlos Magno, Aníbal Machado, a intelectualidade e os militantes de esquerda do Rio de Janeiro. E nessa, esquecia de assinar o ponto de volta no IBGE.

À noite, íamos assistir o Teatro Experimental do Negro, do Abdias Nascimento; outra noite, a Orquestra Afro-Brasileira e Abigail Moura; outra noite, o Ballet Afro de Mercedes Batista e o ensaio do grupo folclórico de Haroldo Costa, onde minha mãe ensinava dança.

Meu pai conversava muito comigo, me falava dos problemas raciais, da má divisão de renda do povo brasileiro. Me dizia do respeito que se devia ter com as diferenças, me falava da história da África, como eu devia me orgulhar de ser negra, sem discriminar qualquer outra raça. Enquanto minha mãe (Terapeuta Ocupacional, trabalhou no Museu da Imagem do Inconsciente, com Dra. Nice de Oliveira; era uma exímia costureira, bordadeira) me ensinou a fazer os serviços domésticos, a ser sempre honesta, a me afastar de vícios, como fumar e beber.

Ela, mesmo presbiteriana como era, me ensinou todas as danças folclóricas, com exceção das danças dos Orixás, que aprendi quando entrei no Candomblé.

Papai me orientava para as artes, me levando a ateliês de seus amigos, comprando livros, porque sabia que eu gostava de ler.

Fiz o primário gratuito porque tinha uma senhora, Dona Armanda Álvaro Alberto, que mantinha uma escola para as crianças pobres de Caxias, muito avançada, nos moldes europeus.

Mas o ginásio, não tinha público, papai pagava com dificuldade, pois ele vivia da arte. Aí eu atrasava o pagamento, passava abaixadinha na secretaria para que o Dr. Ely Combat (diretor do ginásio de Caxias) não me visse, aí ele ia até a sala de aula e falava:

― Quem não pagou a mensalidade não faz prova...

Falava com papai, ele dizia: ― Filha, não vou lhe deixar nada material, só o que você estudar, vou pra cidade tentar vender um quadro ou livros, mas você não vai perder a prova.

Eu tinha uns 9 anos quando ele foi preso político. Policiais truculentos, armados até os dentes, invadiram à noite a nossa casa, ele estava de cueca "samba-canção", acalmava a gente, eu e minha irmã chorando, Liberto com sarampo na cama que os policiais reviraram dizendo que tinha armas escondidas. Logo papai, que era pacifista como Gandhi, mamãe ficou brava com os policiais.

Levaram ele... Mamãe ia de prisão em prisão com a gente, até que descobriu que ele estava preso incomunicável na Rua da Relação (Rio).

Depois, quando eu estudava o clássico, me levou para a Europa com o elenco do Teatro Popular Brasileiro, ele foi de avião, nós fomos de navio Louis Limiere, e voltamos no Provence.

Em 1961, convidados pelo escultor Assis, viemos para o Embu.

E hoje coloco em prática, com filhos e netos, todos os ensinamentos desse grande pai Solano Trindade.

Obrigada meu pai Francisco Solano Trindade e Maria Margarida da Trindade por terem existido.

Raquel Trindade, 26 de junho de 2008 - Embu das Artes, São Paulo – Brasil

 

Poema inédito de meu pai:

NEM SÓ DE POESIA VIVE O POETA

Nem só de poesia vive o poeta
há o "fim do mês"
o agasalho
a farmácia
a pinga
o tempo ruim, com chuva
alguém nos olhando
Policialescamente
De vez em quando
Um pouco de poesia
Uma conta atrasada
Um cobrador exigente
Um trabalho mal pago
Uma fome
Um discurso à moda Ruy
E às vezes uma mulher fazendo carinho
Hoje a lua não é mais dos poetas
Hoje a lua é dos astronautas

Solano Trindade
1969