Introdução
        Certo dia, 
          eu saía para trabalhar quando a vizinha me chamou: 
          
           Espere, Ieda. O Dr. Fulano vai para o Campo Grande e pode lhe 
          dar uma carona.
          
          O Dr. Fulano era um senhor grisalho, muito cheio de mesuras e gentilezas.
          
           Professora, estou encantado em conhecê-la. Soube que a 
          senhora sabe tudo sobre a África.
          
           Ninguém sabe tudo sobre nenhum assunto  retruquei.
          
          Mas ele não deu nenhuma importância à minha interrupção 
          porque, de fato, aquilo era um mero preâmbulo à cretinice 
          que veio logo em seguida.
          
           Já que a senhora sabe tudo sobre a África, não 
          acha que, sendo o cérebro do negro comprovadamente menor do que 
          o do branco, ele é, naturalmente, menos inteligente?
          
          Confesso que me senti tão irritada quanto vocês estão 
          se sentindo agora, ao ler esta idiotice. Mas parece que o velho Oxalá 
          jogou o seu alá sobre mim e eu permaneci bastante calma, respondendo 
          com outra pergunta:
          
           O senhor já ouviu falar em Léopold Senghor?
          
           Não, nunca ouvi.
          
          Então eu comecei a falar sobre Léopold Sédar Senghor, 
          africano, filho de pai e mãe africanos (porque se for mestiço 
          eles dizem que a inteligência vem do lado branco). Contei como 
          Senghor, muito jovem, lecionou francês, na França, aos 
          franceses. Que ele era membro da Academia Francesa de Letras, vencendo 
          todos os escritores franceses que competiram com ele. Que ele era traduzido 
          para o alemão, o japonês, o inglês e até para 
          o português. Que ele era Doutor em Honoris Causa em mais 
          de 20 Universidades do mundo inteiro, que havia ganho mais de 15 prêmios 
          internacionais de poesia... E, como se tudo isso não bastasse, 
          era um grande estadista, respeitado no mundo inteiro.
          
          Chegando ao nosso destino, mais ou menos uns dez minutos depois, o Dr. 
          Fulano admitiu:
          
           A senhora me convenceu.
          
          Ao que respondi, com ironia:
          
           E com um crioulo só.
        
        Gosto de 
          contar essa história como demonstrativo da fragilidade do racismo 
          e também de que, às vezes, uma argumentação 
          tranqüila e bem fundamentada funciona melhor do que nossos gritos 
          de cólera, embora essa cólera seja mais que justificada.
          
          Mas, quando começo a escrever sobre Senghor, vejo que toda a 
          sua vida foi exatamente isto: negar, e não apenas para os brancos, 
          como querem os seus inimigos, mas para os próprios negros, principalmente 
          os negros da diáspora, quanta falácia foi escrita e "cientificamente 
          comprovada" sobre nossa inferioridade intelectual, sobre não 
          termos História, Civilização ou Cultura.
        
         Dados 
          Biográficos
          
          Senghor era de família aristocrática. O pai, serere, era 
          um rico comerciante de nobre descendência; a mãe era peul 
          (ou fulani) povo de pastores nômades. Sua infância, em Joal, 
          a aldeia senegalesa onde nasceu, foi sem maiores problemas.
          
          O menino Léopold estudou na missão católica de 
          Ngazobil e completou seus estudos secundários no Lycée 
          Van Vollenhoven.
          
          Ganhou uma bolsa de estudos e foi para Paris, sendo o primeiro africano 
          a obter o título de "agregé" numa universidade 
          francesa.
          
          Os anos de estudo em Paris são fundamentais para o surgimento 
          do movimento da Negritude, resultante do encontro do senegalês 
          Léopold Sédar Senghor com o martinicano Aimé Césaire 
          e com Léon Gontran Damas, da Guiana Francesa.
          
          Sua carreira na França, foi brilhante. Em 1936 foi professor 
          em Tours, mais tarde em Paris. Durante a II Guerra, foi feito prisioneiro 
          pelos nazistas. Na oportunidade, aprendeu alemão e escreveu poemas 
          que depois foram publicados em Hosties Noires (Hóstias 
          Negras) Depois de libertado, fez parte da Resistência.
          
          Em 1945 foi eleito Deputado do Senegal na Assembléia Constituinte 
          Francesa. Quando o Senegal uniu-se ao Sudão para formar a Federação 
          do Mali, Senghor foi Presidente da Assembléia Federal.
          
          Desfeita a Federação, com a independência do Senegal, 
          Senghor foi eleito o primeiro presidente da nova república e 
          permaneceu no cargo até 1980, quando se retirou, por sua livre 
          e espontânea vontade, indo viver na Normandia, terra de sua esposa. 
          
          
          Em 1983 foi eleito para a Academia Francesa de Letras. Os últimos 
          anos de sua vida passou entre a Normandia, Paris e Dakar.
          
          Senghor visitou o Brasil mais de uma vez, tendo recebido, em 1964, o 
          título de Doutor em Honoris Causa pela UFBa.
          
          Sua obra foi traduzida para uma infinidade de idiomas: japonês, 
          alemão, sueco, russo, italiano, português...
          Seus prêmios literários se somam aos que ganhou como político 
          e estadista.
          
          Ele foi Doutor em Honoris Causa em mais de 20 universidades.
        
        Sobre 
          o Movimento da Negritude
          
          O encontro de estudantes negros, de diferentes procedências, nas 
          metrópoles européias, foi de fundamental importância 
          para o surgimento de uma consciência negra, melhor talvez dizer 
          de uma consciência pan-africana, incluindo-se aqui os africanos 
          na diáspora.
          
          Considera-se o marco inicial do Movimento da Negritude a publicação, 
          em 1932, da revista Légitime Défense por um grupo 
          de estudantes antilhanos. Revista que não passou do primeiro 
          número, tendo seus fundadores sofrido as maiores represálias, 
          até mesmo por parte de seus compatriotas conservadores.
          
          Contudo, ela influenciou definitivamente o grupo que surgiu a seguir 
          e fundou outra revista L'étudiant noir (o Estudante Negro). 
          Além da revista, o grupo desenvolveu intensa atividade. Organizando 
          reuniões, exposições, assembléias, publicando 
          artigos e poemas em outras revistas, conseguiu fazer o mundo enxergar 
          que existia, sim, uma cultura, uma civilização africana.
          
          O impacto foi tão forte que Aimé Césaire  
          o primeiro a usar a palavra negritude em um poema  destruiu 
          tudo o que tinha escrito até então. Para ele e para Léon 
          Damas, foi uma surpresa maravilhosa ouvir Senghor falar de uma África 
          jamais sonhada pelos negros da diáspora, África dos doutores 
          de Tumbuctu, do império Ashanti, das amazonas do Daomé. 
          África cuja música não era feita somente de tambores, 
          mas de sofisticados instrumentos como o khalam e o korá.
          
          Resultante do Movimento foi a publicação da Anthologie 
          de la nouvelle poésie africaine et malgache, com prefácio 
          de Jean Paul Sartre, em que o famoso escritor e filósofo francês 
          escreveu: "Que esperáveis, pois, quando retirásseis 
          a mordaça que tapava estas bocas negras ? Que elas vos entoassem 
          louvores?"
          
          A antologia revela ao mundo uma infinidade de poetas africanos e malgaches 
          (de Madagascar) que vieram a se tornar famosos. Posteriormente, em colaboração 
          com o intelectual senegalês Alioune Diop funda a revista Présence 
          Africaine, que também editou várias obras de escritores 
          africanos em prosa e poesia.
          
          Para Senghor, Negritude significava "a soma total dos valores 
          africanos". E Damas proclamava: não somos mais estudantes 
          martinicanos, senegaleses, ou malgaches, somos, cada um de nós 
          e todos nós, um estudante negro (daí o título da 
          revista).
          
          Reações
          Nem só de elogios viveu o Movimento da Negritude, e muito menos 
          o seu fundador. Dentre as primeiras reações está 
          a célebre frase de Wole Soyinka, nigeriano, primeiro negro a 
          receber o Prêmio Nobel de Literatura (1986): "O tigre, não 
          precisa proclamar a sua tigritude. Ele salta sobre a presa e a mata".
          
          Intelectuais negros mais radicais criticam o amor de Senghor pela França. 
          Femi Ojo-Ade o chama de híbrido.
          Mas é bom lembrar que ele soube bater, quando necessário. 
          Em "Hóstias Negras" ele diz palavras muito duras sobre 
          a Europa e sobre a França:
          "Senhor Deus, perdoa a Europa branca
          A verdade, Senhor, é que durante quatro séculos de luzes 
          ela lançou às minhas terras a baba e o ladrar dos seus 
          molossos
          E a França:
          Que também ela trouxe a morte e o canhão às minhas 
          aldeias azuis, que pôs os meus uns contra os outros como cães 
          à disputa de um osso."
          
          Vale, também, lembrar que o Movimento precede em quase trinta 
          anos a independência dos países africanos.
          Sua influência é inegável na literatura que veio 
          a seguir e mesmo no pensar de gerações de africanos.
        
        A 
          obra de Léopold Senghor
          
          É uma obra vasta e diversificada, em prosa e poesia, incluindo 
          desde artigos sobre lingüística , política, religião, 
          até os seus famosos poemas.
          
          Além do Movimento da Negritude, Senghor é considerado 
          fundador do Socialismo Africano e da Civilização do Universal.
          
          Relação das principais publicações
          1944  Les classes nominales em wolof et substantifs 
          à initiales nasales
          1945  L'article conjonctif em wolof
           Chants d'ombre (Cantos da Sombra)
          1948  Hosties Noires (Hóstias negras)
           Anthologie de la nouvelle poésie africaine et malgache
          1949  Chants pour Naëtt
          1953  La apport de la poésie nègre
          La belle histoire de Leuk le lièvre (com Abdoulaye Sadji)
          1954  Langage et poèsie negro africaine
           Esthéthique négroafricaine
          1956  Éthiopiques (poesia)
          1959  African Socialism
          1961  Nocturnes (poesia)
           La dialectique du nom  verbe em wolof
          1964  Liberté I: Négritude et humanisme
           Poèmes
          1971  Liberté II : Nation et voie africaine du socialisme
          1973  Lettres d'hivernage
          1977  Liberté III : Negritude et civilisation de l' universal
          1979  Ëlégies majeurs (poesia)
          1980  La poésie de l'action
          1983  Discurso de recepção na Academia Francesa
          1984  Poèmes
          1988  Ce que je crois ( no que eu creio)
          1990  Ouvre poètique (obra poética)
          1991  Collected poetry (trad. de Melvin Dixon)
          1993  Liberté V: Les dialogue des cultures
        
        DOIS 
          POEMAS DE SENGHOR
          
          Tradução de Guilherme de Souza Castro*
          
          MULHER NEGRA
          
          Mulher nua, mulher negra
          Vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza!
          Cresci à tua sombra; a doçura de tuas mãos acariciou 
          os meus olhos.
          E eis que, no auge do verão, em pleno Sul, eu te descubro, 
          Terra prometida, do cimo de alto desfiladeiro calcinado,
          E tua beleza me atinge em pleno coração, como o golpe 
          certeiro
          de uma águia.
          Fêmea nua, fêmea escura.
          Fruto sazonado de carne vigorosa, êxtase escuro de vinho negro,
          boca que faz lírica a minha boca
          savana de horizontes puros, savana que freme com 
          as carícias ardentes do vento Leste.
          Tam-tam escultural, tenso tambor que murmura sob os dedos
          do vencedor
          Tua voz grave de contralto é o canto espiritual da Amada.
          Fêmea nua, fêmea negra,
          Lençol de óleo que nenhum sopro enruga, óleo calmo 
          nos flancos do atleta,
          nos flancos dos príncipes do Mali. 
          Gazela de adornos celestes, as pérolas são estrelas sobre 
          
          a noite da tua pele.
          Delícia do espírito, as cintilações de ouro 
          sobre tua pele que ondula
          à sombra de tua cabeleira. Dissipa-se minha angústia, 
          
          ante o sol dos teus olhos. 
          Mulher nua, fêmea negra,
          Eu te canto a beleza passageira para fixá-la eternamente,
          antes que o zelo do destino te reduza a cinzas para
          alimentar as raízes da vida.
        ____________________________________________________________
          VISITA
          
          Na escassa penumbra da tarde,
          sonho.
          Vêm me visitar as fadigas do dia,
          os defuntos do ano, as lembranças da década,
          como uma procissão dos mortos daquela aldeia
          perdida lá no horizonte.
        Este é 
          o mesmo sol, impregnado de miragens
          o mesmo céu que presenças ocultas dissimulam
          o mesmo céu temido daqueles que tratam 
          com os que se foram
        Eis que a 
          mim vêm os meus mortos.
        ________________________________________
          * 
          Falecido professor da UFBa, foi diretor do CEAO e professor em Ifé 
          (Nigéria).
         
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