Léopold Sédar Senghor:
1906—2001



Ieda Machado Ribeiro dos Santos

L. Senghor. Photo Editions du Seuil

Introdução
Dados Biográficos
Sobre o Movimento da Negritude
A Obra de Léopold Senghor
Dois Poemas de Senghor


Introdução

Certo dia, eu saía para trabalhar quando a vizinha me chamou:

— Espere, Ieda. O Dr. Fulano vai para o Campo Grande e pode lhe dar uma carona.

O Dr. Fulano era um senhor grisalho, muito cheio de mesuras e gentilezas.

— Professora, estou encantado em conhecê-la. Soube que a senhora sabe tudo sobre a África.

— Ninguém sabe tudo sobre nenhum assunto — retruquei.

Mas ele não deu nenhuma importância à minha interrupção porque, de fato, aquilo era um mero preâmbulo à cretinice que veio logo em seguida.

— Já que a senhora sabe tudo sobre a África, não acha que, sendo o cérebro do negro comprovadamente menor do que o do branco, ele é, naturalmente, menos inteligente?

Confesso que me senti tão irritada quanto vocês estão se sentindo agora, ao ler esta idiotice. Mas parece que o velho Oxalá jogou o seu alá sobre mim e eu permaneci bastante calma, respondendo com outra pergunta:

— O senhor já ouviu falar em Léopold Senghor?

— Não, nunca ouvi.

Então eu comecei a falar sobre Léopold Sédar Senghor, africano, filho de pai e mãe africanos (porque se for mestiço eles dizem que a inteligência vem do lado branco). Contei como Senghor, muito jovem, lecionou francês, na França, aos franceses. Que ele era membro da Academia Francesa de Letras, vencendo todos os escritores franceses que competiram com ele. Que ele era traduzido para o alemão, o japonês, o inglês e até para o português. Que ele era Doutor em Honoris Causa em mais de 20 Universidades do mundo inteiro, que havia ganho mais de 15 prêmios internacionais de poesia... E, como se tudo isso não bastasse, era um grande estadista, respeitado no mundo inteiro.

Chegando ao nosso destino, mais ou menos uns dez minutos depois, o Dr. Fulano admitiu:

— A senhora me convenceu.

Ao que respondi, com ironia:

— E com um crioulo só.


Gosto de contar essa história como demonstrativo da fragilidade do racismo e também de que, às vezes, uma argumentação tranqüila e bem fundamentada funciona melhor do que nossos gritos de cólera, embora essa cólera seja mais que justificada.

Mas, quando começo a escrever sobre Senghor, vejo que toda a sua vida foi exatamente isto: negar, e não apenas para os brancos, como querem os seus inimigos, mas para os próprios negros, principalmente os negros da diáspora, quanta falácia foi escrita e "cientificamente comprovada" sobre nossa inferioridade intelectual, sobre não termos História, Civilização ou Cultura.


Dados Biográficos

Senghor era de família aristocrática. O pai, serere, era um rico comerciante de nobre descendência; a mãe era peul (ou fulani) povo de pastores nômades. Sua infância, em Joal, a aldeia senegalesa onde nasceu, foi sem maiores problemas.

O menino Léopold estudou na missão católica de Ngazobil e completou seus estudos secundários no Lycée Van Vollenhoven.

Ganhou uma bolsa de estudos e foi para Paris, sendo o primeiro africano a obter o título de "agregé" numa universidade francesa.

Os anos de estudo em Paris são fundamentais para o surgimento do movimento da Negritude, resultante do encontro do senegalês Léopold Sédar Senghor com o martinicano Aimé Césaire e com Léon Gontran Damas, da Guiana Francesa.

Sua carreira na França, foi brilhante. Em 1936 foi professor em Tours, mais tarde em Paris. Durante a II Guerra, foi feito prisioneiro pelos nazistas. Na oportunidade, aprendeu alemão e escreveu poemas que depois foram publicados em Hosties Noires (Hóstias Negras) Depois de libertado, fez parte da Resistência.

Em 1945 foi eleito Deputado do Senegal na Assembléia Constituinte Francesa. Quando o Senegal uniu-se ao Sudão para formar a Federação do Mali, Senghor foi Presidente da Assembléia Federal.

Desfeita a Federação, com a independência do Senegal, Senghor foi eleito o primeiro presidente da nova república e permaneceu no cargo até 1980, quando se retirou, por sua livre e espontânea vontade, indo viver na Normandia, terra de sua esposa.

Em 1983 foi eleito para a Academia Francesa de Letras. Os últimos anos de sua vida passou entre a Normandia, Paris e Dakar.

Senghor visitou o Brasil mais de uma vez, tendo recebido, em 1964, o título de Doutor em Honoris Causa pela UFBa.

Sua obra foi traduzida para uma infinidade de idiomas: japonês, alemão, sueco, russo, italiano, português...
Seus prêmios literários se somam aos que ganhou como político e estadista.

Ele foi Doutor em Honoris Causa em mais de 20 universidades.


Sobre o Movimento da Negritude

O encontro de estudantes negros, de diferentes procedências, nas metrópoles européias, foi de fundamental importância para o surgimento de uma consciência negra, melhor talvez dizer de uma consciência pan-africana, incluindo-se aqui os africanos na diáspora.

Considera-se o marco inicial do Movimento da Negritude a publicação, em 1932, da revista Légitime Défense por um grupo de estudantes antilhanos. Revista que não passou do primeiro número, tendo seus fundadores sofrido as maiores represálias, até mesmo por parte de seus compatriotas conservadores.

Contudo, ela influenciou definitivamente o grupo que surgiu a seguir e fundou outra revista L'étudiant noir (o Estudante Negro). Além da revista, o grupo desenvolveu intensa atividade. Organizando reuniões, exposições, assembléias, publicando artigos e poemas em outras revistas, conseguiu fazer o mundo enxergar que existia, sim, uma cultura, uma civilização africana.

O impacto foi tão forte que Aimé Césaire — o primeiro a usar a palavra negritude em um poema — destruiu tudo o que tinha escrito até então. Para ele e para Léon Damas, foi uma surpresa maravilhosa ouvir Senghor falar de uma África jamais sonhada pelos negros da diáspora, África dos doutores de Tumbuctu, do império Ashanti, das amazonas do Daomé. África cuja música não era feita somente de tambores, mas de sofisticados instrumentos como o khalam e o korá.

Resultante do Movimento foi a publicação da Anthologie de la nouvelle poésie africaine et malgache, com prefácio de Jean Paul Sartre, em que o famoso escritor e filósofo francês escreveu: "Que esperáveis, pois, quando retirásseis a mordaça que tapava estas bocas negras ? Que elas vos entoassem louvores?"

A antologia revela ao mundo uma infinidade de poetas africanos e malgaches (de Madagascar) que vieram a se tornar famosos. Posteriormente, em colaboração com o intelectual senegalês Alioune Diop funda a revista Présence Africaine, que também editou várias obras de escritores africanos em prosa e poesia.

Para Senghor, Negritude significava "a soma total dos valores africanos". E Damas proclamava: não somos mais estudantes martinicanos, senegaleses, ou malgaches, somos, cada um de nós e todos nós, um estudante negro (daí o título da revista).

Reações
Nem só de elogios viveu o Movimento da Negritude, e muito menos o seu fundador. Dentre as primeiras reações está a célebre frase de Wole Soyinka, nigeriano, primeiro negro a receber o Prêmio Nobel de Literatura (1986): "O tigre, não precisa proclamar a sua tigritude. Ele salta sobre a presa e a mata".

Intelectuais negros mais radicais criticam o amor de Senghor pela França. Femi Ojo-Ade o chama de híbrido.
Mas é bom lembrar que ele soube bater, quando necessário. Em "Hóstias Negras" ele diz palavras muito duras sobre a Europa e sobre a França:
"Senhor Deus, perdoa a Europa branca
A verdade, Senhor, é que durante quatro séculos de luzes ela lançou às minhas terras a baba e o ladrar dos seus molossos
E a França:
Que também ela trouxe a morte e o canhão às minhas aldeias azuis, que pôs os meus uns contra os outros como cães à disputa de um osso."

Vale, também, lembrar que o Movimento precede em quase trinta anos a independência dos países africanos.
Sua influência é inegável na literatura que veio a seguir e mesmo no pensar de gerações de africanos.


A obra de Léopold Senghor

É uma obra vasta e diversificada, em prosa e poesia, incluindo desde artigos sobre lingüística , política, religião, até os seus famosos poemas.

Além do Movimento da Negritude, Senghor é considerado fundador do Socialismo Africano e da Civilização do Universal.

Relação das principais publicações
1944 — Les classes nominales em wolof et substantifs à initiales nasales
1945 — L'article conjonctif em wolof
— Chants d'ombre (Cantos da Sombra)
1948 — Hosties Noires (Hóstias negras)
— Anthologie de la nouvelle poésie africaine et malgache
1949 — Chants pour Naëtt
1953 — La apport de la poésie nègre
La belle histoire de Leuk le lièvre (com Abdoulaye Sadji)
1954 — Langage et poèsie negro africaine
— Esthéthique négro—africaine
1956 — Éthiopiques (poesia)
1959 — African Socialism
1961 — Nocturnes (poesia)
— La dialectique du nom — verbe em wolof
1964 — Liberté I: Négritude et humanisme
— Poèmes
1971 — Liberté II : Nation et voie africaine du socialisme
1973 — Lettres d'hivernage
1977 — Liberté III : Negritude et civilisation de l' universal
1979 — Ëlégies majeurs (poesia)
1980 — La poésie de l'action
1983 — Discurso de recepção na Academia Francesa
1984 — Poèmes
1988 — Ce que je crois ( no que eu creio)
1990 — Ouvre poètique (obra poética)
1991 — Collected poetry (trad. de Melvin Dixon)
1993 — Liberté V: Les dialogue des cultures


DOIS POEMAS DE SENGHOR

Tradução de Guilherme de Souza Castro*

MULHER NEGRA

Mulher nua, mulher negra
Vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza!
Cresci à tua sombra; a doçura de tuas mãos acariciou os meus olhos.
E eis que, no auge do verão, em pleno Sul, eu te descubro,
Terra prometida, do cimo de alto desfiladeiro calcinado,
E tua beleza me atinge em pleno coração, como o golpe certeiro
de uma águia.
Fêmea nua, fêmea escura.
Fruto sazonado de carne vigorosa, êxtase escuro de vinho negro,
boca que faz lírica a minha boca
savana de horizontes puros, savana que freme com
as carícias ardentes do vento Leste.
Tam-tam escultural, tenso tambor que murmura sob os dedos
do vencedor
Tua voz grave de contralto é o canto espiritual da Amada.
Fêmea nua, fêmea negra,
Lençol de óleo que nenhum sopro enruga, óleo calmo nos flancos do atleta,
nos flancos dos príncipes do Mali.
Gazela de adornos celestes, as pérolas são estrelas sobre
a noite da tua pele.
Delícia do espírito, as cintilações de ouro sobre tua pele que ondula
à sombra de tua cabeleira. Dissipa-se minha angústia,
ante o sol dos teus olhos.
Mulher nua, fêmea negra,
Eu te canto a beleza passageira para fixá-la eternamente,
antes que o zelo do destino te reduza a cinzas para
alimentar as raízes da vida.

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VISITA

Na escassa penumbra da tarde,
sonho.
Vêm me visitar as fadigas do dia,
os defuntos do ano, as lembranças da década,
como uma procissão dos mortos daquela aldeia
perdida lá no horizonte.

Este é o mesmo sol, impregnado de miragens
o mesmo céu que presenças ocultas dissimulam
o mesmo céu temido daqueles que tratam
com os que se foram

Eis que a mim vêm os meus mortos.

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* Falecido professor da UFBa, foi diretor do CEAO e professor em Ifé (Nigéria).

 

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