Como um país pode completar 500 anos de forma ignomiosa por conta de um racismo secularmente voraz? Seria longa a resposta, como vêm sendo longas e diversas as formas de luta dos afro-descendentes contra essa aberração nacional.

Os Cadernos Negros, expressão de excelência do Movimento Negro, atravessam o milênio com a grandiosidade de terem sido uma das mais importantes marcas da cultura e da luta do povo negro neste século. É uma iniciativa que revigora, na lembrança e no cotidiano, um modo de resistência, um quilombismo, que nos permitiu ser povo num cenário tão devastado pela violência da escravidão e do racismo, patologias crônicas das elites e do Estado nacionais.

Nenhum negro, ou seus descendentes, pode esquecer, fingir que não existiu, ou negligenciar a crueldade e o vexame que foi a escravidão. Mas essa consciência se constrói com labuta, tolerância e um certo rigor que os Cadernos Negros impõem ao privilegiar o autor e a autora negros; ao mesmo tempo que consolidam o conceito e o princípio de literatura afro-brasileira, bem distante da interpretação acadêmica sempre sedenta por objetos e indiferente aos sujeitos.

O que revela a história da humanidade é que povos se expressam pela sua cultura; se hoje falamos e fazemos literatura afro-brasileira, é porque a literatura nacional não expressa o que somos - afro-descendentes - na cultura brasileira. Nenhum negro é aquela coisa bestializada do romantismo brasileiro, nenhuma negra é uma vertente de fogo, luxúria ou subserviência como descrito nas páginas desses afamados romancistas contemporâneos ou não.

Nos contos, como neste número, e nas poesias publicados pelos Cadernos Negros, encontrei mais que arte nos textos provocativos, sinceros, lapidados e vibrantes. Encontrei uma literatura que só por ser afro-brasileira espelha os meus sentimentos, os meus dramas, as minhas sortes, o meu jeito de amar, as minhas alegrias e as minhas formas de dizer não. Toda a nossa intimidade escrita, com uma cor que só nós podemos dar, porque faz parte do nosso ser. Não é com modéstia que afirmo que a literatura brasileira está marcada por um viés que a distingue das literaturas construídas pelo mundo afora. Aqui existe literatura negra, literatura afro-brasileira, como existe o samba, a feijoada e o candomblé.

Abdias Nascimento
Ex-Senador da República

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